quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O inferno do Nomadismo, por Heródoto Barbeiro

Na semana passada, o mundo ficou chocado e ainda mais triste com a cena de Aylan Kurdi,  menino sírio de 03 anos, que apareceu morto com o rosto quase enterrado à beira-mar na praia turca de Ali Hoca, no vilarejo de Bodrum. 

O jornalista e âncora da Record News escreveu um texto bem esclarecedor sobre o drama que vivem famílias de refugiados, cuja intenção é deixar o sofrido lugar de origem para se agarrar a uma chance de vida em destino desconhecido e numa travessia repleta de riscos.



Por Heródoto Barbeiro



Uma das grandes conquistas da civilização se passou quando grupos humanos chegaram à beirada de grandes rios. Vinham de locais contíguos tocados pela fome e a perseguição aos animais que procuravam água. Eram caçadores e coletores de frutos. Não podiam viver sem a caça, por isso migravam atrás dela. O encontro com os rios, a descoberta dos metais moles, mas bons para as ferramentas que pudessem  remexer as margens barrentas, contribuíram para a revolução do neolítico. Uma de suas características foi a troca do nomadismo pelo sedentarismo. Este pressupunha segurança, constituição de povoados, organização mínima da produção, e os primeiros passos para a criação de um poder estatal e religioso, que quase sempre ser confundiam. O rio ganhou espírito, alma, representação no panteão dos deuses e as preces pela bonança da colheita. Com isso a fome se atenuou e o ser   humano se estabeleceu em palafitas sobre as águas. Ficou para trás os tempos de mudar constantemente de lugar para lugar em busca da sobrevivência. O advento da sociedade hidráulica, entre tantas outras conquistas consolidou o homem na sua casa, na sua vila, no seu reino, ao lado do seu templo e no meio de sua família. 

Migrações em massa são sempre provocadas por grande desgraças. Como a perpetuada pelos colonizadores para tirar proveito do Brasil. O tráfico de escravos trouxe aproximadamente três milhões e meio de imigrantes da África para o Brasil. Foram obtidos por raptos, guerras de todo tipo ou pela compra através de troca de produtos coloniais como rum, fumo  de terceira categoria ou cachaça. Essa migração foi contínua uma vez que era adequada para o sistema colonial vigente. As populações eram aprisionadas, enfiadas nos porões dos navios negreiros, suas aldeias eram destruídas e liquidados os  clãs e as famílias. Era uma migração forçada, na época da acumulação capitalista. Durante trezentos anos essas pessoas chegaram ao Brasil negociadas como mercadorias, sem direitos de qualquer espécie, e com a vida curta sob o sol e debaixo do chicote. A estabilidade da aldeia originária com seus costumes, cultura, modo de vida acabou. Eram migrantes, podiam ser vendidos e transportados de um lado para o outro para trabalhar ora na cana de açúcar, ora no ouro ou café.  

As guerras atuais mostram que o poder de arrancar as famílias de suas casas, as crianças das escolas aumentou na proporção que o armamento e a estupidez cresceram no Século 21. Segundo a ONU há 60 milhões de refugiados no mundo. Os motivos das perseguições são a recusa de quem não quer se dobrar diante da violência, da falta de democracia e liberdade de cultuar os seus deuses e ancestrais. Fugiram do massacre, do estupro, da bit-escravidão, dos bombardeios em massa. Recusaram-se a aderir a uma religião e a um modo de vida que não queriam. Por isso foram  mais torturados. Fuzilamentos, massacres, genocídios e degolas são o motor dessa transumância contemporânea. Fugir, não importa para onde. Deixar o inferno para trás. Procurar uma réstia de sol e de esperança nem que seja preciso se lançar no mar, arriscar a vida nas ondas, ou deixar o corpo de uma criança afogada na praia.

Heródoto Barbeiro é Jornalista, âncora do Jornal da Record News e do R7, ex-apresentador do Roda Vida da TV Cultura e do Jornal da CBN. Ex diretor e gerente de jornalismo do Sistema Globo de Rádio-SP. Foi professor de história da USP. Autor de dezenas de livros. Ganhou os prêmios Ayrton Senna, Líbero Badaró, UNESCO, Associação dos Economistas, APCAs, Comunique-se dentre muitos outros. É proprietário da Reserva Mahayana na Mata Atlântica e apoiador da SAT – Sociedade Ambiental (Amigos) de Taiaçupeba.

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